Mito e Moro, honestos sem dúvidas
Em tempos de irracionalidade, lançar luz sobre o breu tornar-se imprescindível.
Nas últimas eleições presidenciais, observamos um espetáculo tragicômico nas
mídias convencionais e, principalmente, nas Novas Tecnologias da Informação e
Comunicação. Em redes sociais, eleitores sentiram-se parte do processo
democrático e participaram ativamente, sobretudo compartilhando notícias
falsas. O resultado foi a vitória daquele que é chamado por seus seguidores de
Mito, por isso não faz mais sentido mencionar seus adversários no presente
texto. Afinal, perdedores nunca tiveram vez em nosso país, não é? Quantas vezes
vimos um time sendo vaiado por seus torcedores porque perdeu a final do campeonato?
Aliás, brasileiro não aprecia ler, mas adora vaiar! Então, esquecemos os
perdedores da pretérita eleição! A bola da vez é o Mito e o Moro! Até porque pagamos
seus salários. Eles são considerados por néscios e sofomaníacos respectivamente o
político mais honesto da nação e o invencível super-herói. Mito e Moro, paixões
nacionais.
Durante o pleito, se alguém postasse no perfil que o Mito era misógino,
racista, preconceituoso já vinha nos comentários a pronta resposta: “pelo menos
meu candidato é honesto”. Se alguém publicasse que o Mito era defensor de
ditadura, tortura, milícia, devastação do ambiente e caça predatória de animais
silvestres já vinha nos comentários a pronta resposta: “pelo menos meu
candidato é honesto”. Se alguém ousasse declarar que o Mito recebeu propina já
vinha nos comentários a pronta resposta: “pelo menos meu candidato é honesto”,
mesmo o Mito tendo reconhecido o fato a Antônio Vila na Rádio Jovem Pan. Caso alguém
indagasse onde estava o plano de governo do Mito? Já vinha nos comentários a
pronta resposta: “pelo menos meu candidato é honesto”. Caso houvesse menção de
que o Mito permaneceu 28 anos no Poder Legislativo sem fiscalizar os governos
corruptos do Rio de Janeiro e sem aprovar consistentes projetos em prol da
sociedade já vinha nos comentários a pronta resposta: “pelo menos meu candidato
é honesto”. Indivíduos brigaram com familiares e amigos de longa data por causa
do Mito. Muitos néscios e sofomaníacos
continuam a apaixonada defesa do Mito nas redes sociais, mesmo depois do desastroso princípio de governo e das revelações sobre o envolvimento de corrupção de seus filhos e de seu
partido. O patrimônio do Mito não condiz com os salários recebidos.
Precisaria esclarecer de onde veio a fortuna da família mitológica
Mais honesto ainda é considerado Moro, o destemido herói que subtraiu
a corrupção de nossa nação. Nos municípios e estados não há mais fraudes nas
licitações, não há mais propinas, não há mais desvios dos repasses da saúde e
da educação. Moro desmontou o maior esquema de corrupção da história! Será?
Estranhamente, a fim de atingir seus objetivos, desrespeitou leis e o código de
ética da magistratura com o aval de alguns Ministros do Supremo Tribunal
Federal. Não entrarei no mérito das mensagens vazadas pelo jornalista Grenn
Greenwald do Intercept Brasil, uma vez que à luz da razão são desnecessárias
para confirmar as vergonhosas transgressões legais. No entanto, os defensores de
Moro já têm a pronta resposta: “pelo menos Moro é honesto”. Contudo, não se
aplicaria mais nem a máxima (atribuída equivocadamente a Nicolau Maquiavel) “os
fins justificam os meios”, uma vez que as transgressões para esse propósito teriam
de ser o genuíno combate à corrupção, não mera subtração de adversários políticos
envolvidos em corrupção. Espera aí, Moro era juiz, não era político, diriam seus
apaixonados fãs. Verdade, mas quando aceitou cargo político do presidente que
foi apoiado publicamente por sua esposa trouxe evidências de suas pretéritas
intenções. Aliás, o Mito não teria vencido as eleições sem a condução de Moro na
Lava-Jato. Juiz tem de ser imparcial, mas Moro criou um cargo no Brasil, “Juiz
Acusador”, uma vez que participou ativamente com o Ministério Público, orientou
e ofereceu testemunha contra seu réu, coincidentemente aquele que poderia tirar
a vitória de seu candidato nas eleições e futuro “patrão”. A Lava-Jato sempre
foi um amplo projeto de poder que contou a participação de juízes, promotores,
ministros do STF, policiais, empresários e alguns poucos políticos. Mas, pelo
menos Moro é honesto! Não é? Honesto não! Talvez, não seja corrupto. Não
podemos nos esquecer de que a Lava-Jato de Moro, fundou uma instituição sem
fins lucrativos para gerir 2,5 bilhões de reais recuperados que deveriam retornar
de onde havia sido roubado: Petrobras.
Deve-se, caríssimo leitor, ater que não empreguei o termo “ladrão” no
presente artigo de opinião, porquanto inapropriado seria; não obstante, há
nuances circunstanciais entre os atuais fatos e o Sermão do Bom Ladrão de Padre
Antônio Vieira, um dos maiores expoentes do Barroco do Brasil ao lado de
Gregório de Matos há quatro séculos. Não se trata, porém, de supor juízo de
valor à apropriação indevida, mas tão somente ao discurso demagógico. O Mito e
Moro não possuem discursos inovadores, são carregados de falácias: retórica de
última categoria. Em nenhum momento, reitero, entrei no mérito de julgar suas
atitudes, todavia de propor uma reflexão séria sobre os verdadeiros fatos, sem
idolatria deste ou daquele partido. Considerar que tudo que escrevi como apoio
de adversários políticos do Mito e de Moro é tomar o não dito pelo dito,
clássica falácia de “mentes embotadas”.
LEIA
O Sermão do Bom Ladrão, foi escrito em 1655, pelo
Padre Antônio Vieira. Ele proferiu este sermão na Igreja da Misericórdia de
Lisboa (Conceição Velha), perante D. João IV e sua corte. Lá também estavam os
maiores dignitários do reino, juízes, ministros e conselheiros. Seguem alguns
trechos da obra:
Valendo-se da presença dos dois ladrões na crucificação de Cristo,
condenados à morte “sem lhes valer procurador, nem embargo”, e citando a
conduta daquele que pediu a Jesus que se lembrasse dele no Paraíso, passa a
falar dos ladrões que assaltam o Reino e não são punidos.
Destaca que é mais comum ver-se ladrões que levam reis ao inferno, do
que reis que levem ladrões ao paraíso. Baseado em São Tomás de Aquino e
em Santo Agostinho, destaca que para os ladrões, “sem restituição do alheio não
pode haver salvação”, e que essa obrigação de restituir "não só obriga aos
súditos e particulares, senão também aos cetros e às coroas”.
Acentua se referir não aos ladrões miseráveis que roubam um homem, mas
"àqueles que roubam cidades e reinos, sem temor, nem perigo”, e justifica
porque considera que os Reis e príncipes são obrigados a devolver o roubado se
os ladrões não o fizerem: “primeiro, porque os reis lhes dão os ofícios e
poderes com que roubam” e segundo porque os conservam neles.
Embora o rei não possa saber a priori se um indicado irá ou não
roubar, para que não seja responsável pelos roubos, recomenda que as pessoas
sejam nomeadas apenas por “merecimento”, o que, no geral, segundo ele, não
ocorre. Aquele nomeado “sem merecimento”, diz Vieira, não é apenas ladrão,
senão ladrão e ladrão: uma vez porque furta o ofício, e outra vez porque há de
furtar com ele. O que entra pela porta do “merecimento” poderá vir a ser
ladrão, mas os que não entram por ela já o são.
Continua, “uns entram pelo parentesco, outros pela amizade, outros
pela valia, outros pelo suborno, e todos pela negociação .... e quando se
negocia não há mister outra prova....agora será ladrão oculto, mas depois
ladrão descoberto”.
Referindo-se a um relatório apresentado por São Francisco Xavier sobre
a situação na Índia, e que segundo ele ocorria nas demais colônias portuguesas,
Vieira afirmou que os seus governantes conjugam “por todos os modos o verbo
rapio, porque furtam por todos os modos da arte, não falando em outros novos e
esquisitos”.
E continua: “começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira
informação que pedem aos práticos é que lhes apontem e mostrem os caminhos por
onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque, como têm o mero e
misto império, a todo ele aplica despoticamente as execuções da rapina. Furtam
pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam, e, para que
mandem todos, os que não mandam não são aceitos".
"Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes
parece bem e, gabando as coisas desejadas aos donos delas, por cortesia, sem
vontade as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco
cabedal com o daqueles que manejam muito, e basta só que ajuntem a sua graça,
para serem quando menos meeiros na ganância."
"Furtam pelo modo potencial, porque, sem pretexto nem cerimônia
usam de potência. Furtam pelo modo permissivo porque permitem que outros
furtem, e estes compram as permissões. Furtam pelo modo infinitivo, porque não
tem o fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes em que se
vão continuar os furtos."
"Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas, porque a
primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus criados, e as terceiras
quantas para isso têm indústria e consciência."
"Furtam juntamente por todos os tempos, porque do presente — que
é o seu tempo — colhem quanto dá de si o triênio; e para incluírem no presente
o pretérito e futuro do pretérito desenterram crimes, de que vendem
perdões, e dívidas esquecidas, de que se pagam inteiramente, e do futuro
empenham as rendas e antecipam os contratos, com que tudo caído ou não caído
lhes venham cair nas mãos."
"Finalmente, nos mesmos tempos, não lhes escapa os imperfeitos,
perfeitos, plus quam perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtaram,
furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse."
"Em suma, que o resumo de toda esta rampante conjugação vem a ser
o supino do mesmo verbo: a furtar para furtar. E quando eles têm conjugado
assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva,
eles, como se tivessem feito grandes serviços, tornam carregados de despojos e
ricos, e elas ficam roubadas e consumidas."
Verdadeiramente, continua o padre Antônio Vieira, “não sei como não
reparam os príncipes em matéria de tanta importância.... se são ladrões, de
nenhum modo se pode consentir nem dissimular que continuem no posto e
lugar onde o foram, para que não continuem a ser”.
O Sermão é muito longo, mas de uma retórica brilhante e fundamentação
lógica, e vale a pena ser lido por extenso.
Interessante é a posição de Vieira sobre a responsabilidade daqueles
que nomeiam para cargos públicos pessoas “sem merecimento”, porque essa prática
é muito generalizada no país.
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